Discriminações inconstitucionais em licitações

Não são raros os projetos de leis que pretendem criar discriminações aparentemente voltadas a combater desigualdades. No entanto, ainda que sejam bem-intencionados, geralmente esses projetos impõem cotas inexequíveis ou criam ônus exagerados que, na prática, tornam o ambiente de negócios mais hostil a investimentos, prejudicando severamente a geração de empregos.

Nesse gênero de projetos, está em tramitação o PL 5905/2016 que pretende alterar o recém-criado estatuto das empresas públicas e sociedades de economia mista (Lei n° 13.303/2016) para que as suas licitações obriguem a contratação mínima de 15% de mulheres e 70% de trabalhadores da localidade onde for realizada a obra ou prestado o serviço.

Em face disso, cabe indagar se o PL 5905/2016 é constitucional e se propicia a alocação socialmente eficiente dos recursos das empresas públicas e sociedades de economia mista.

Sob a ótica constitucional, a discriminação geográfica de brasileiros, segundo o município em que residem, conflita com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre os quais “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (CF, Art. 3º, IV).

Qualquer pessoa, sem distinção de qualquer natureza, tem o direito fundamental de escolher livremente o município de sua moradia, sem que isto condicione a sua empregabilidade, como também é livre a sua locomoção em todo o território nacional, sendo que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (CF, Art. 5º, XV e XLI). Ademais, o trabalhador não pode ser demitido porque decidiu mudar-se para outro município.

Sabe-se que a Constituição Federal contempla a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, literalmente. Mas a obrigação inexorável de contratar, condicionada ao endereço da pessoa a ser contratada, nem sequer se assemelha a incentivos, comumente instituídos por meio de isenções fiscais (CF, Art. 7º, XX).

O brasileiro não deve ser contratado ou demitido devido ao município de sua moradia. Segundo a Constituição Federal, “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si” (Art. 19, III).

Portanto, a discriminação geográfica de brasileiros atenta contra a integridade nacional, explicitamente protegida pela Constituição, até mesmo com intervenção (CF, Art. 34, I). A forma federativa de Estado e os direitos e garantias individuais são cláusulas pétreas, ou seja, não podem ser alteradas, nem mesmo por meio de proposta de emenda à Constituição (CF, Art. 60, § 4º, I e IV).

O PL 5905/2016 cria obrigações onerosas a todas as empresas a que se refere, e assim desconsidera que a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios devem dispensar às microempresas e às empresas de pequeno porte tratamento diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação ou eliminação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias (CF, Art. 179).

Além de constituírem os municípios mais populosos, as capitais dos Estados sediam a grande maioria de empresas públicas e sociedades de economia mista, como também concentram as suas operações, obras e serviços. Portanto, se o PL 5905/2016 virar lei, haverá uma concentração ainda maior de postos de trabalho nas capitais, em prejuízo dos demais municípios.

Definitivamente, isso não seria constitucional, nem significaria alocação socialmente eficiente de recursos (Lei n° 13.303/2016, Art. 27, § 1º). Há outros modos para fomentar o desenvolvimento local e regional, com eficiência socioeconômica e conformidade constitucional. Recordemos, por exemplo, que a empresa pública e a sociedade de economia mista podem exigir, no edital de licitação respectivo, a subcontratação de microempresas e empresas de pequeno porte (Lei Complementar n° 123/2006, Art. 48, II e Decreto n° 8.538/2015).

 

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Roberto Baungartner

Roberto Baungartner

Advogado, doutor em Direito (PUC/SP), vice-presidente do IBDC – Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e integrante do CORHALE.