Contribuição assistencial, “monodiálogo” do STF e desconto no salário
Sentado à mesa, penso ter percebido uma nova categoria de discurso, entre o monólogo e o diálogo. Trata-se da condição de debater sem se importar com a opinião alheia, colocar sob a capa da conversação a simples exposição do seu próprio pensamento.
O monodiálogo pode ser exercitado por um dos convivas, mas fica ainda mais interessante quando vários o praticam simultaneamente. São efusões de opiniões, afirmações e, por fim, conclusões que reafirmam as próprias convicções, pouco importando os destinatários.
Interessante que essa prática gera a sensação de construção conjunta, já que de alguma forma todos puderam falar algo, ainda que para si mesmos.
O recente julgamento do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a possibilidade da fixação, por assembleia, de contribuições assistenciais a todos os integrantes da categoria, associados ou não ao sindicato, parece ser um nítido caso de monodiálogo.
Primeiro, vale lembrar que o caso foi originalmente decidido com a seguinte tese: “É inconstitucional a instituição, por acordo, convenção coletiva ou sentença normativa, de contribuições que se imponham compulsoriamente a empregados da categoria não sindicalizados”.
Após apresentação de embargos declaratórios, a maioria dos ministros que compõe o STF acompanhou a modificação proposta pelo ministro Barroso, para aceitar a fixação da contribuição assistencial a todos os integrantes da categoria, desde que assegurado o direito de oposição.
A justificativa é a necessidade dos sindicatos conseguirem recursos para poderem exercer sua missão principal, a realização da negociação coletiva, uma vez que o fim da contribuição sindical compulsória (antigo imposto sindical) teria dificultado tal mister.
O fundamento parece correto, ainda mais na era do “negociado sobre o legislado”, mas esconde uma deficiência do movimento sindical brasileiro que, parece, jamais será suplantada: o vício da intervenção estatal. E nada é tão ruim que não possa piorar. Se antes a desejada intervenção era pela lei, hoje é pelo Judiciário.
Desde 2017, quando a Reforma Trabalhista transformou em facultativa a contribuição sindical prevista por lei (artigo 579 da CLT), inúmeras foram as tentativas de se criar um sistema alternativo que pudesse manter as coisas como sempre foram.
Sem lei, os sindicatos começaram a negociar penduricalhos nas negociações coletivas para, a maioria das vezes de forma inconstitucional, obter algum tipo de financiamento, nem que fosse do próprio empregador, o que obviamente jamais poderia ser sustentado perante o princípio da liberdade sindical.
A jurisprudência do TST (Tribunal Superior do Trabalho) sempre foi firme neste sentido, bastando ver o Precedente Normativo de número 119: “A Constituição da República, em seus artigos 5º, XX e 8º, V, assegura o direito de livre associação e sindicalização. É ofensiva a essa modalidade de liberdade cláusula constante de acordo, convenção coletiva ou sentença normativa estabelecendo contribuição em favor de entidade sindical a título de taxa para custeio do sistema confederativo, assistencial, revigoramento ou fortalecimento sindical e outras da mesma espécie, obrigando trabalhadores não sindicalizados. Sendo nulas as estipulações que inobservem tal restrição, tornam-se passíveis de devolução os valores irregularmente descontados”.
Nada, absolutamente nada, restou modificado no ordenamento jurídico que pudesse gerar conclusão diferente. O artigo 513, letra “E” da CLT, que permite o estabelecimento da contribuição assistencial, continua o mesmo de 1946.
Por qual motivo, então, o Poder Judiciário vai alterar o cenário atual? Simples, porque os sindicatos não conseguem convencer os próprios integrantes da categoria da sua importância, o que geraria contribuições espontâneas. E porque, ao que parece, não há consenso político para restabelecimento de contribuição compulsória por lei.
Se ninguém consegue dialogar para o convencimento, nada melhor do que o monodiálogo por quem tem o Poder…
Muitos ponderarão que a nova contribuição assistencial é justa e não fera a liberdade sindical, seja porque os não filiados ao sindicato também gozam dos benefícios conquistados pela negociação coletiva, seja porque assegurado o direito à oposição.
O primeiro argumento é fácil de rebater: que acabe a unicidade sindical. Não há situação mais absurda que nossa Constituição, ainda hoje, impeça a plena liberdade sindical. A unicidade foi uma escolha necessária quando da formação do sistema sindical brasileiro, que não mais se justifica. E nem adianta consultar os próprios detentores do monopólio que seriam a voz dos interessados, obviamente não haverá concordância.
O segundo ponto, direito à oposição, se consegue dar um conforto teórico para arrumação do sistema, na prática dificilmente vai garantir sua efetividade. A experiência brasileira já mostrou, em época não muito distante, que tal tipo de oposição, ainda que garantida individualmente, encontra obstáculos temporais e físicos.
Não foram poucos os casos, apesar do até então pacificado entendimento do TST, de sindicatos que estabeleceram contribuições assistenciais com direito à oposição, condicionando esta a requerimento por escrito, na sede do sindicato em exíguo prazo. Até durante a pandemia do coronavírus houve tal prática, expondo trabalhadores na ânsia da arrecadação.
O que parece não terem percebido, e aqui talvez seja eu a monodialogar, é que ainda que a assembleia de trabalhadores fixe a nova contribuição assistencial e não haja oposição, simplesmente não é possível a realização do desconto automático no salário dos empregados que pertençam à categoria.
O fundamento para tal conclusão parece filme de mistério, com idas e vindas até o desfecho fatídico.
Se o artigo 513, “e” da CLT permite o estabelecimento da contribuição assistencial, o artigo 545 consolidado deixa claro que não há possibilidade de desconto salarial sem a autorização dos empregados. Da mesma forma, o artigo 462 da CLT, que concretiza o princípio da intangibilidade salarial, veda qualquer tipo de desconto nos salários, salvo os ali expressamente permitidos.
Eu sei. O argumento será que a autorização do artigo 545 pode ser coletiva, como previsto na negociação coletiva, e que o próprio artigo 462 permite o desconto previsto em contrato coletivo de trabalho, antiga denominação das convenções e acordos coletivos de trabalho. Sem falar no artigo 611-A da CLT, que estabelece o negociado sobre o legislado.
Entretanto, o legislador deixou claro no artigo 611-B da CLT, inciso XXVI que não pode ser objeto de negociação coletiva a “liberdade de associação profissional ou sindical do trabalhador, inclusive o direito de não sofrer, sem sua expressa e prévia anuência, qualquer cobrança ou desconto salarial estabelecidos em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho”.
Ora, se a contribuição assistencial obrigatória, ainda que sem exercício de direito à oposição, precisa ser estabelecida em negociação coletiva, e se norma de ordem pública fixa que não pode ser objeto de negociação coletiva a instituição de descontos nos salários de contribuições aos sindicados sem a expressa e prévia anuência do trabalhador, por mais que o STF legitime a nova contribuição, resta evidente que não será possível a realização automática dos descontos pelo empregador.
Como o sistema sindical brasileiro parece uma colcha de retalhos, com o lado progressista enaltecendo monopólio e fixação de contribuições pelo Estado (seja por lei ou por decisão judicial), com o beneplácito do espectro conservador, em seus monodiálogos perante os integrantes das categorias, ficamos, por ora, assim.
Em suma, mesmo que estabelecida a contribuição assistencial, sem oposição do interessado, o desconto no salário do empregado somente pode ocorrer com sua prévia e expressa anuência. Uma coisa é o empregado estar obrigado a pagar, outra, totalmente diferente, é que seja compelido ao pagamento via desconto no salário.
Boa sorte ao empregador que não observar tal diligência. A Justiça do Trabalho estará logo ali…
Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-set-05/trabalho-contemporaneo-contribuicao-assistencial-monodialogo-stf-desconto-salario