PL 4505-A de 2008

O Projeto de Lei nº 4.505-A, de 2008, de autoria do Deputado Luiz Paulo Vellozo Lucas, em seus 10 artigos pretende regulamentar o trabalho a distância, conceituar e disciplinar as relações de teletrabalho e dar outras providências.

O art. 1º conceitua o instituto; o art. 2º elenca os locais passíveis de teletrabalho; os arts. 3º e 4º, de natureza programática, alinham finalidades e indicam políticas ou medidas focadas no teletrabalho; o art. 5º sujeita a relação de emprego no teletrabalho à CLT e aos instrumentos de negociação coletiva; o art. 6º explicita direitos dos teletrabalhadores, excetuado o das horas extras; o art. 7º relaciona os deveres próprios dos teletrabalhadores; o art. 8º dispõe sobre condições e requisitos do contrato de teletrabalho; o art. 9º elege, salvo cláusula em contrário, a lei do local de prestação dos serviços como regente do teletrabalho transnacional; e finalmente o art. 10 é a cláusula de vigência.

Em prol da iniciativa, o autor relaciona o novo instituto ao art. 7º, inciso XXVII, da CF (proteção em face da automação); considera o teletrabalho consequência da modernização tecnológica e sua projeção sobre os meios e sistemas de produção; situa o tema e sua evolução legislativa em fontes do direito comparado e, também, no contexto nacional; refere os estudos interdisciplinares para enquadramento do teletrabalho e os fundamentos da proposta legislativa em comento; apresenta quadros comparativos das vantagens e desvantagens para o empregado e o empregador, assim como para o Poder Público; analisa a legislação brasileira pré-existente e outras questões juridicamente relevantes, sobretudo a questão das horas extras; e, finalmente, recorre a estudos temáticos da SOBRATT – Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividade.

Em seu trâmite regimental, o projeto esteve sujeito inicialmente à apreciação conclusiva das comissões a que foi distribuído (CTASP e CCJC), ao termo da qual foi interposto recurso para apreciação da matéria pelo Plenário da Casa.

No âmbito da CTASP, o projeto recebeu duas emendas, a primeira, que acrescenta parágrafo único ao art. 3º, para explicitar a reserva de 20% da oferta nacional de postos de teletrabalho a portadores de deficiência; e a segunda, que altera a redação do art. 6º explicitando que se tratm de direitos mínimos, e não excluem outros.

Por sua vez, na CCJC, o trabalho do relator da matéria limitou-se a sanar vícios formais de técnica legislativa nos arts. 4º, 6º e 7º, com a substituição de alíneas por incisos, e de inconstitucionalidade presente na redação original do art. 4º , excluindo a Administração Pública do alcance do Projeto.

O projeto depende, agora de deliberação plenária.

Em que pesem as razões invocadas e as contribuições dos colegiados técnicos para depurar senões e impropriedades do projeto, na verdade subsistem aspectos de forma e mérito que não recomendam a iniciativa, recomendando sua reestruturação legislativa por inteiro.

Os mecanismos legais, ou o tratamento legal dado pelo projeto ao instituto do teletrabalho, suscitam dúvidas e questionamentos de ordem normativa e no tocante a sua aplicação às situações concretas.

1)   A formalização legislativa da proposta como lei esparsa.

Em primeiro lugar, não se pode validar a edição de lei especial sobre matéria que, na essência, poderia constituir capítulo específico da própria Consolidação das Leis do Trabalho; ou seja, sobreleva a desnecessidade de lei autônoma.

Com efeito, a CLT contempla, por exemplo, no Título III, diversos capítulos ou seções que reúnem normas especiais de tutela do trabalho, articulados específicos sobre duração e condições do trabalho de numerosas categorias, ou de proteção do trabalho da mulher ou do menor.

Em tal modo, a inserção de capítulo acerca do teletrabalho seria a solução normativa adequada e até correta, em lugar da edição de lei esparsa, sobretudo quando se trata de Legislação Consolidada, à qual o projeto se liga em vários preceitos, e tendo em vista o princípio contido no inciso IV do art. 7º da Lei Complementar nº 95, de 26.2.1998, a cujo teor, em regra, o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei.

Se o objetivo é prover segurança jurídica para o empregado e empregador, com jornada controlada e outros requisitos, a forma mais correta é inserir capítulo próprio na CLT, que já contempla situações ou profissões específicas, ao longo do todo o Título III.

2)   A inconveniente disciplina legal única do teletrabalho na relação laboral e de trabalho autônomo.

O projeto reúne, com o mesmo disciplinamento legal, o teletrabalho com vínculo de emprego e o teletrabalho prestado por trabalhador autônomo, embora constituam situações juridicamente diferentes. Em uma, existem, a despeito da forma como se dá a prestação de serviço, os requisitos típicos de subordinação e não eventualidade, próprios da relação de emprego. Na outra, estes não existem. Mais ainda, a autonomia negocial, no caso do teletrabalho sem vínculo de emprego, é muito maior. A diversidade de situações e consequências jurídicas não recomenda tratamento unitário da matéria para efeito de teletrabalho.

3)   A conceituação do teletrabalho, na redação do art. 1º do PL.

O enunciado do art. 1º do projeto, na tentativa de conceituação do teletrabalho, que se espraia por todo o projeto, envolve tanto a atividade desenvolvida a distância por empregado quanto por trabalhador autônomo, a que se poderia estender a prestação de serviços por empresário individual, nas condições ali descritas.

Há numerosas situações de prestação de serviços fora do estabelecimento da empresa contratante ou tomadora, ainda que sob o traço comum de utilização da TI&C e da interatividade, que podem caracterizar diferentes enquadramentos jurídico-contratuais, nem se pode atribuir a mesma regulação legal para trabalhos ou prestações jurídica e substancialmente distintos.

A redação do preceito revela-se confusa e incongruente, gerando fundadas dúvidas sobre o reconhecimento de relação de emprego quando esta não se acha contratada. Assim, quando o teletrabalho se desenvolve sob controle “de um empregador” ou “para um cliente”, por um “empregado” ou “trabalhador autônomo de forma regular”, não se distingue o prestador empregado do prestador autônomo.

Ora, se o segundo presta serviços de forma regular, portanto contínuos, não-eventuais, com definição de carga horária e várias condições legais da prestação, já começam a se reunir elementos bastantes para tipificar a primeira hipótese, e não outra. A demanda de trabalho pelo cliente confunde-se com a atividade requisitada e controlada pelo empregador, não se sabendo quando o prestador se pode validamente qualificar como “autônomo”.

Que dizer, então, se o trabalho a distância for provido por empresário individual, cuja relação contratual, ao subsumir-se às condições e definições do projeto, quando por certo levarão o vínculo para o campo laboral empregatício, sobretudo se agregadas outras cláusulas decorrentes de negociação coletiva.

Como estender os acordos e convenções ao teletrabalho, no caso de autônomos e empreendedores individuais, os quais, conforme o art. 5º do PL, também ficariam sujeitos às “disposições e particularidades aplicáveis ao tema e previstas nesta Lei, bem como em convenção coletiva ou acordo coletivo”.

Só a conceituação dúbia e contraditória do objeto precípuo da iniciativa legiferante já vicia o conjunto da proposta, e será fonte de insegurança jurídica quanto de multiplicação de conflitos laborais, porquanto as demais disposições ali contidas são decorrentes da tipificação do âmbito de aplicação do Projeto, daquilo que este considera teletrabalho e caracteriza como prestador empregado ou autônomo.

4)   Cota percentual “do tempo de trabalho”

É também criticável a definição do teletrabalho, feita a partir de certo percentual da atividade, como figura no art. 1º: “… todas as formas de trabalho desenvolvidas (…) por uma cota superior a quarenta por cento do tempo de trabalho em um ou mais lugares diversos do local de trabalho regular (…)

Ora, de plano cabe a indagação: uma relação de trabalho na qual até 59% do tempo se desenvolvem no estabelecimento da empresa e apenas 41% fora, pode caracterizar o teletrabalho? Ou este é apenas parte de uma atividade que deve ser contratualmente tida como presencial?

Na prática, será muito difícil aferir o preenchimento do percentual. Melhor definição deverá, a exemplo do Código do Trabalho de Portugal ([1]*), levar em conta, tão-somente, a forma como se dá a execução da atividade.

Por outro lado, também aqui surgem outras dúvidas: o percentual será computado na jornada de trabalho, ou na carga horária semanal ou mensal? É possível concentrar os 40% do “tempo de trabalho” em determinado número de dias, e nos outros cumprir jornada presencial? Isto deverá ser considerado trabalho “autônomo”?

5)     Dispositivos meramente programáticos

Já restou observado que os arts. 3º e 4º se revestem de natureza meramente programática e propositiva, conjunto de boas intenções no plano das finalidades e sugestão de medidas no campo das ações governamentais, delineamento de um elenco de compromissos, políticas públicas e ações governamentais para dinamização do teletrabalho. São dispositivos pouco afeitos ao texto de lei, cujas normas devem ser permeadas pela imperatividade e sanção.

São enunciados de propósitos e “vamos fazer” fáceis de dizer, mas de difícil de implementar. Simples afirmações do gênero não significam nada de concreto. Melhor suprimi-las.

6)   Enunciado controverso e dúbio do art. 5º

A regra do art. 5º do PL enuncia a prima facie uma obviedade (sobre a relação de emprego fundada na CLT) e, na sua parte final, quando ressalva “as disposições e particularidades aplicáveis ao tema e previstas nesta Lei, bem como em convenção coletiva ou acordo coletivo”, abre espaço para controvérsia, na medida em que permite interpretação de que normas coletivas poderiam alterar amplamente as regras legais aplicáveis ao teletrabalho, o que soa excessivo.

A redação do mesmo art. 5º mostra-se conflitante ou contraditória também porque, ao dispor que “a relação de emprego no teletrabalho terá como fundamentos os mesmos previstos na CLT”, “atendendo aos princípios e prerrogativas ali dispostos, em especial em seu art. 3º” – está claramente apontando no sentido do reconhecimento do vínculo laboral, na espécie (art. 3º da CLT). Como abrigar, então, na prestação de teletrabalho o trabalhador autônomo?

7)   Desnecessidade do art. 6º

Já a regra do art. 6º, que enumera direitos trabalhistas equipolentes àqueles albergados na Constituição e na CLT, nada mais faz que reproduzir desnecessariamente disposições vigentes. A aplicação das disposições da CLT, consoante o art. 5º, no caso de teletrabalho, já faz com que tenha o empregado os direitos mencionados.

A sua vez, a exclusão do direito a horas extras, expresso no parágrafo único do mesmo art. 6º, nada mais reflete que a jurisprudência dominante, no caso de trabalhos comuns realizados em domicílio ou fora do estabelecimento da empresa.

8) Impropriedade de preceito do inciso III do art. 6º

Especificamente, ainda tendo por foco o art. 6º, ao elencar os direitos a que fazem jus os teletrabalhadores, imperativo observar a inaplicabilidade do inciso III, quando impõe ao empregador a observância de normas protetivas da saúde do trabalho – se este se realiza em domicílio, ou até em lan houses e em outros locais apartados do âmbito de gestão da empresa, por escolha do empregado.

9) Vícios e contradições do art. 7º (deveres do teletrabalhador)

O art. 7º acha-se muito mal redigido. Habitualidade e pessoalidade não são deveres do empregado que presta serviços por meio de teletrabalho. São pressupostos para a existência de relação de emprego, como deflui do disposto nos arts. 2º e 3º da CLT. Se estão ausentes, não existe contrato de trabalho.

Os demais deveres listados ao teletrabalhador não diferem, essencialmente, das obrigações comuns aos empregados em geral.

10) Trabalho continuado nos finais de semana (art. 8º, p.u.)

No tocante à permissão para o trabalho continuado em finais de semana, que figura no parágrafo único do art. 8º do PL, parece que semelhante abertura não atende à finalidade do repouso semanal remunerado, como previsto na Lei Maior.

11) Antinomia entre o art. 8º, p.u., e o art. 6º, p.u

Dispõe o p.u. do art. 8º:

“A carga horária obedecerá ao disposto no art. 7º, inciso XIII, da Constituição Federal (*[2]), sendo permitido o trabalho nos finais de semana, uma vez que se trata de jornada de trabalho aberta, sendo devidas, porém, as proporcionalidades referentes ao repouso semanal remunerado”.

Dispõe o p.u. do art. 6º:

Em razão do caráter de controle de jornada aberta e, via de regra, de forma virtual, aos empregados teletrabalhadores não será contemplado o direito às horas extras, devendo a remuneração ajustar-se às horas normais de trabalho”.

O parágrafo único do art. 8º contradiz o disposto no parágrafo único do art. 6º, uma vez que, se não existe controle de horário, se a jornada de trabalho é aberta, não há como impor limite temporal para a prestação de serviço, nem delimitar as jornadas ou dias da semana nem a proporcionalidade remuneratória.

12) Lei local para o trabalho transnacional (art. 9º)

Cabe arguir dúvida, também, ou pelo menos impor interpretação restritiva, quanto ao que estipula o art. 9º, no caso de trabalho transnacional, segundo o qual será observada “a lei do local da prestação do serviço, salvo disposição contratual em contrário”.

Certamente, a ressalva não terá eficácia em relação ao serviço prestado no Brasil para empresas no exterior, dado que o contrato não pode excluir garantias constitucionais do trabalhador, brasileiro ou estrangeiro, em atividade no País.

Nesse sentido, o art. 9º, parte final, ao permitir a eleição da legislação aplicável, contraria a diretriz firmada pela Súmula 207 do TST (*[3]), e abre perigosamente espaço para afastar-se a aplicação da legislação brasileira a relações jurídicas desenvolvidas no território nacional, o que é inconcebível. Deve prevalecer sempre a legislação do local de prestação de serviço.

Conclusão

Em síntese, tantas são as antinomias, deficiências e reparos que devem ser antepostos ao Projeto de Lei nº 4.505, de 2008, tantos os problemas que poderá suscitar caso convertido em lei, que recomendamos a sua rejeição, para reiniciar a discussão sobre o tema.

[1] “Art. 165º Considera-se teletrabalho a prestação laboral realizada com subordinação jurídica, habitualmente fora da empresa e através do recurso a tecnologias de informação e de comunicação.”

[2]    Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…) XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;

[3] TST Enunciado nº 207 – Res. 13/1985, DJ 11.07.1985 – Mantida – Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003 Relação Jurídica Trabalhista – Conflitos de Leis Trabalhistas no Espaço – Princípio da “Lex Loci Executionis”: “A relação jurídica trabalhista é regida pelas leis vigentes no país da prestação de serviço e não por aquelas do local da contratação”.

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