E as férias durante a pandemia?

Um caso real de uma empresa que suspendeu suas atividades, devido a pandemia, e liberou grande parte dos seus colaboradores para permanecer em casa, recebendo salários normalmente. E aí? O que acontece com as férias?

Essa é uma situação bem mais comum do que imaginamos e bem mais complexa do que esperamos. A pandemia trouxe demandas bastante inusitadas e que forçam as organizações a encontrar as melhores alternativas para se manterem competitivas, rentáveis, justas e atraentes para os melhores talentos. Muitas vezes, algumas soluções já estão na própria Legislação Trabalhista, mas, como ela é um conteúdo não tão charmoso, acaba sendo pouco visitada e suas alternativas frequentemente ignoradas.

Segundo o Art. 133, inciso III da CLT, não terá direito a férias o empregado que, no curso do período aquisitivo (…) “deixar de trabalhar, com percepção do salário, por mais de 30 (trinta) dias, em virtude de paralisação parcial ou total dos serviços da empresa”.

Claro que, apesar da lei ter essa determinação, a empresa deve assumir algumas precauções para agir corretamente com a sua gente e ao mesmo tempo evitar riscos de passivos trabalhistas, tutelares/administrativos (fiscalizações e multas), dentre outros, além de, obviamente, assegurar o engajamento e a motivação dos seus colaboradores orientados aos propósitos, objetivos e metas da organização.

Os colaboradores de uma empresa são um dos seus stakeholders mais importantes para o sucesso dos negócios e alcance dos propósitos da organização, eles são os verdadeiros embaixadores da “marca empregadora”!

Agir conforme a Legislação frente a todos os seus públicos (stakeholders), incluindo um dos mais importantes, que são os trabalhadores (nesse caso, aqueles com vínculo empregatício, evidentemente), é um pilar fundamental para que a empresa assegure boas práticas de gestão e impulsione positivamente sua marca empregadora. Mesmo em tempos de Covid-19!

Aí o funcionário perguntou “…chefe, minhas segundas férias vencem em janeiro, mas programaram as que já ‘tão’ vencidas só ‘pra’ junho… disseram que as que ‘venceu’ eu perdi… é isso mesmo”???

Sim, é isso mesmo! Caso a condição da pessoa em questão se encaixe nos pressupostos do Artigo da CLT já mencionado. Mas o líder do colaborador foi orientado? Ele sabe como explicar? Existe posicionamento do sindicato para o assunto? Como as operações serão reorganizadas? E as provisões? O colaborador foi ouvido? Ele aceita? Está confortável? Só existe essa saída? E se isso? E se aquilo? Um tema que parece tão simples assume várias perspectivas de análise e de atenção para a correta adoção e implementação. Eis algumas que são fundamentais: Pessoas, Operações, Contabilidade, Administração Financeira, Compliance.

Pessoas

Essa perspectiva não aparece em primeiro lugar por acaso. Elas, as pessoas, têm que vir prioritariamente. É aqui a parte mais sensível desse processo e que afetará todas as demais perspectivas empresariais. São nas pessoas que estão a experiência, a cultura, os sentimentos, os medos, anseios, coragem, resiliência que faz com que toda a organização funcione bem ou não. Antecipar, ou “cortar” férias, significa mexer com as pessoas. Não é um mero papel ou simples programação, por trás do procedimento, há (acima de tudo) o ser humano. É nele que se tem que pensar primeiro. O dispositivo legal só será um mero… dispositivo. Muito eficaz, se bem aplicado.

Transparência, liderança, suporte emocional e psicológico, orçamento… essas coisas afetam as vidas das pessoas! E a organização precisa estar atenta a esses impactos e ajudar a minimizar e, se possível, até fortalecer o nível de resiliência da sua gente.

Transparência – deve haver total clareza na orientação às pessoas. O colaborador deve ser muito bem orientado das razões que levaram a empresa a adotar esse procedimento. Quase nada é fácil. Nem para a organização, nem para as pessoas individualmente. No entanto, sempre que há clareza na comunicação e entendimento das razões, tudo acaba sendo mais “assimilável” e absorvido com mais positividade.

Envolvimento da liderança – o(a) líder deve ser o porta-voz das boas e más notícias, é justamente essa habilidade que faz dele(a) o mais indicado a exercer esse papel e ter reconhecimento ao desempenhá-lo. A organização deve instrumentalizar sua liderança sobre como esses mecanismos funcionam, deixar claras as razões das decisões, e educar como informar, orientar e envolver os colaboradores.

Suporte emocional e psicológico  nem todas as pessoas estão preparadas para essas decisões, muitas têm filhos, organizam seu ano em função do ano letivo (que também foi afetado). Além disso, quando a empresa toma esse tipo de decisão, as pessoas tendem a imaginar que em seguida virão ajustes estruturais e consequentemente ondas de demissões. As pessoas ficam ansiosas, inseguras, temerosas e acabam passando esses sentimentos a todos a sua volta, afetando seu próprio bem-estar e da sua família. A empresa deve ter sensibilidade para lidar com essas inseguranças e incertezas. Comunicar, envolver, sensibilizar, orientar, oferecer suporte… sempre!

Orçamento pessoal  a remuneração de férias é uma antecipação do salário mensal, calculada com base (quando for o caso) em médias variáveis (como horas extras e comissões, por exemplo), acrescida do Terço Adicional de Férias, opções por Abono Pecuniário, alguns casos antecipação da primeira parcela do 13º salário… e tudo isso tem um impacto muito significativo na programação orçamentária das pessoas, portanto ao tomar uma decisão como essa a empresa (e os líderes) deve ter isso muito bem claro, saber exatamente como conduzir cada caso e orientar cada um dos seus colaboradores de como a empresa agirá em relação a esses direitos.

Operações

Planejamento  colocar as equipes em casa, sem trabalhar, significa que a empresa não estará operando e, portanto, não atendendo aos seus clientes, não no nível que normalmente atende. Como minimizar isso? Devem-se reprogramar os padrões de produção, redimensionar os pedidos dos clientes e renegociar os insumos e matérias-primas com fornecedores.

Organização  ao mesmo tempo que as Operações demandam novo planejamento, também deverão ser reorganizadas em função das novas escalas de trabalho e de programação de férias.

Práticas Contábeis

Muitas vezes as decisões são tomadas de forma intempestiva e circunstancial, desprezando todos os demais desdobramentos, especialmente os contábeis. Curioso que muita gente só lembra da contabilidade na “época do fechamento”, o que é um grande erro. Todos as manobras gerenciais e de operações de qualquer empreendimento devem ter em conta quais serão as repercussões contábeis, pois é ali que a empresa terá o seu retrato final no exercício operacional, mostrando se teve lucro ou prejuízo.

Provisões  sim, a empresa terá que reconfigurar a conta de Provisão de Férias e, conforme cada situação, também a de 13º, pois essa liberação, dentro do conceito do Artigo de Férias, terá repercussões nas obrigações e exigibilidades trabalhistas a serem contabilizadas e apuradas.

Impacto e Lucros e Prejuízos  devido às reconfigurações causadas nas Provisões de Férias (e 13º, conforme cada caso), a apuração de L&P poderá ser afetada, obrigando a novas projeções que demandarão iniciativas também da contabilidade gerencial.

Contas Patrimoniais  o fato de a empresa estar inoperante poderá afetar estoques de matéria-prima, produto acabado, inventários, níveis de contas a pagar e a receber, incluindo, obviamente, as movimentações decorrentes dos custos e despesas trabalhistas.

Administração Financeira

Fluxo de Caixa  ao manter as pessoas em casa, sem trabalhar, mas recebendo salários, a empresa precisa levar em conta que pode haver um descasamento entre entrada e saída de valores que pode comprometer o equilíbrio desse fluxo. E isso tem um custo, pois pode levar à tomada de recursos no mercado, ou antecipar liquidez de alguns ativos, que também terá custo financeiro.

Quitação da Remuneração de Férias  despesas como 13º, Terço Constitucional, Abono Pecuniário são verbas que deverão ser programadas e honradas, obrigando ao planejamento do Capital de Giro. Sim, esse simples caso de férias pode afetar esse instrumento de gestão financeira. Mais do que nunca, deve-se integrar as novas escalas de férias com a capacidade de pagamento.

Revisão Orçamentária – muitas empresas trabalham com um orçamento anual, sendo que para muitas delas o grupo de gastos com pessoal é extremamente significativo. Ao tomar a decisão de utilizar esse dispositivo da CLT, uma revisão no orçamento deve ser realizada a fim de evitar surpresas com gastos e despesas não planejadas e os impactos nos resultados finais.

Compliance

Nesta perspectiva, o foco está nas formalizações dos procedimentos a fim de evitar fragilidades legais e exposição a riscos trabalhistas. É a mitigação de pontos vulneráveis que possam gerar litígios com o colaborador ou autuações em possíveis fiscalizações das normas tutelares da relação de trabalho.

Aviso de Férias  a empresa deverá estar atenta ao fato de que a Lei prevê que se deve dar o aviso de férias com 30 dias antes do gozo de férias.

Programação de Férias – embora não tenha previsão em Lei, as escalas de férias são instrumentos administrativos que permitem à empresa monitorar os vencimentos e limites de períodos aquisitivos e efetuar os procedimentos de quitação da remuneração de férias dentro dos prazos legais.

Comunicado ao Ministério do Trabalho  o próprio artigo da CLT determina que o Ministério do Trabalho seja comunicado com antecedência. O não atendimento a essa determinação pode implicar risco tutelar (multas administrativas).

Implicações com Sindicatos  ao tomar esse tipo de decisão, a empresa deve ter o cuidado de certificar-se se há alguma previsão sobre o assunto nos Acordos e Convenções Coletivas de Trabalho. Também é recomendável consultar/envolver o sindicato, dependendo do tipo de influência e qualidade das relações sindicais mantidas pela organização.

Recontagem de períodos aquisitivos  a empresa deverá rever os períodos aquisitivos, se será o caso de ter um novo ponto de início do período, ou considerar o tempo de afastamento para calcular os períodos aquisitivos que virão, para evitar o risco de ter férias vencidas de forma cumulativa, obrigando ao pagamento em dobro, consequentemente onerando os custos.

Formalizações  Sim, apesar de estar dentro da Lei, é necessário formalizar o procedimento com o colaborador, deixando absolutamente claro e documentado todo o procedimento adotado pela empresa. Isso evitará fragilizar a empresa em possíveis divergências e ao mesmo temo dará segurança ao colaborador quanto à correta observância e cumprimento dos seus direitos.

Conclusão

Mas existe o lado bom de tudo isso. Sim, a máxima de que tudo tem um lado bom é muito verdadeira, então vamos a alguns:

Há muitos profissionais, equipes e consultorias de soluções em gestão de pessoas, com enorme capacidade, experiência, criatividade e sensibilidade para ajudar a empresa em como lidar com esse tema de forma correta e segura, como envolver a liderança, conscientizar as pessoas, sensibilizar os stakeholders, manter o nível de engajamento e fortalecer a marca empregadora, dentre várias providências vitais nesses momentos tão extremos que todos vivemos. Existe na legislação dispositivo legal que pode ajudar empresas e pessoas a lidarem com esses momentos estranhos causados pela pandemia.

Os principais softwares de gestão de pessoas são bastante eficientes nesses controles e a grande maioria é integrada, ou parte da mesma plataforma,aos Sistemas de Gestão Financeira, ERPs, etc.

Há inúmeras soluções digitais e acessíveis para que líderes, gestores, executivos e, principalmente, as pessoas possam acompanhar todos os direitos e obrigações. As áreas de relações trabalhistas estão bastante amadurecidas para darem o suporte necessário para que as organizações e as pessoas estejam corretamente amparadas, protegidas pela lei.

Cada vez mais as organizações devem valorizar profissionais de gestão de pessoas (ou Recursos Humanos, como queiram), que, além das práticas usuais da área, têm domínio e experiência de vida e profissional, aportam conhecimento técnico, desenvoltura de comunicação, visão estratégica, capacidade gerencial e liderança inspiradora por diversas perspectivas organizacionais e que saibam equilibrar todos os interesses, valorizando todos os stakeholders, para ajudar a organização, líderes, equipes e pessoas a superarem desafios tão importantes, como esses que o mundo todo está enfrentando.

Os artigos publicados nesta seção são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente refletem a posição do CORHALE.

Reginaldo de Almeida Costa

Reginaldo de Almeida Costa

Headhunter, executivo de RH, com mais de 20 anos de atuação em posições estratégicas de vice-presidência, diretoria, head e gerência de RH de empresas nacionais e multinacionais.